PERFORMANCE

Em pleno Antropoceno, uma sereia se perde, entra pelo canal do porto de Santos e vai parar na catraia. Ela encontra pessoas no território da Bacia do Mercado, pergunta onde fica o mar e como faz para sair dali. Vagando pelas ruas, dança e procura rotas de fuga para uma vida sem encantamento.

 

MITO

Na Enciclopédia Brasileira da diáspora africana, Nei Lopes (2011), define “Iemanjá”, como o nome que deriva da contração da expressão em iorubá Yèyé omo ejá (“Mãe cujos filhos são peixes”) ou simplesmente Yemọjá em referência a um rio homônimo cultuado nos primórdios do culto deste orixá.

O seu nome na cultura popular brasileira Dona Janaína a Mãe d’água é associado por alguns autores a uma origem indígena. Iemanjá, em seu culto original, é um orixá associado aos rios e desembocaduras, à fertilidade feminina, à maternidade e primordialmente ao processo de gênese do Àiyé (mundo) e a continuidade da vida (emi).

Pierre Verger (1964), em seu livro Dieux d’Afrique, registra: “é o orixá das águas doces e salgadas dos Egba, uma nação iorubá estabelecida outrora na região entre Ifé e Ibadan, onde existe ainda o rio Yemọjá. As guerras entre nações iorubás levaram os Egba a emigrar na direção oeste, para Abeokuta, no início do século XIX. (…)O rio Ògùn, que atravessa a região, tornou-se, a partir de então, a nova morada de Iemanjá”.

Odoyá é celebrada em Ifé como filha de Olokun a divindade dos mares, essa simbiose lendária foi enaltecida no processo da diáspora africana resultando na assimilação de Iemanjá dos atributos da água salgada, sendo o motivo para a sua associação aos mares no Novo Mundo.

Com o sincretismo de outras divindades e de influências européias, foi imbuída de inúmeros atributos e poderes em uma grande variedade de cultos. O seu arquétipo maternal consolidou-se sobretudo como Mãe de todos os Orixás. Iemanjá “representa o poder progenitor feminino; é ela que nos faz nascer, divindade que é maternidade universal, a Mãe do Mundo” (ZENICOLA, 2014, p. 41).

 

CORPO

E onde está esse poder feminino nesse território? Ao andar pelo território da Bacia do Mercado estando imersa no Projeto do Instituto PROCOMUM, A Colaboradora, penso nas mulheres exaustas que me rodeia. Mulheres que vagam carregando crianças, sacolas, angústias. Olhares cansados, corpos oprimidos. Mulheres que são violentadas em sua potência de fertilidade, de beleza e de poder de transformação. E ainda assim, dançam. Ainda assim, cuidam, ainda assim contam histórias.

Lavam os chão. Varrem o chão. Jogam suas águas para limpar e nutrir a escassez imposta pelo patriarcado.

A figura de uma sereia perdida, de um mito partido, me povoa o imaginário.

 

TERRITÓRIO

Pensar o território numa dimensão planetária. O canal do porto, os barquinhos, os grandes navios,a travessia de pessoas diárias que enfrentam e escutam a natureza. Muitos discursos e projeções falam de um fim do mundo que se aproxima, devido às mudanças da natureza, justamente pela ação causada pelos seres humanos. Quando se trata de enfrentar o fim, os discursos são múltiplos e em constante disputa. O Antropoceno, reconhecido pela ciência e também disputado em terminologias e “provas”, reforça a noção de incerteza em muitas de nossas práticas – da matemática à astronomia, passando pelas ciências humanas e principalmente a educação e a política. O termo Antropoceno, é usado para designar uma época em que os efeitos da humanidade estariam afetando globalmente a Terra. Como o Antropoceno afeta nosso imaginário? Em Santos a ressaca se transformou no mar invadindo a cidade. Para onde vão as sereias? Que mitos precisaremos construir para sobreviver ao fim do mundo?

 

Referências Bibliográficas

LOPES, N. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2011.

ZENICOLA, D. Performance e ritual. Rio de Janeiro: MAUAD/ Faperj, 2014.

VERGER, P.  Dieux D’Afrique. Paris: Paul Hartmann (1ª edição, 1954; 2ª edição, 1995).