O menino da casa 266 acordava e ainda meio zonzo tomava um café com leite e meia média com margarina, que sua mãe preparava toda manhã. Enquanto ele comia, ela rezava alto “Senhor, não deixe faltar o que já falta. Abençoa essa casa e a terra por debaixo dela. Tem dia que nem bem escurece e minha vista já não alcança luz. Senhor, o que está acontecendo neste lugar?”. O menino olhava e seu olhar virava pra dentro; imaginava um túnel fundo, descolorido e barulhento. Conseguia se divertir nesse lugar apesar de não entender o que seriam esses avessos de que falava a mãe. Achou um recorte de revista e começou a ler em silêncio e mastigando o último naco do pão subiu o tom na tentativa de pronunciar uma palavra encontrada: “embo..embo…ta…do; o que é isso, mãe?”. Mas ela se encontrava no transe delirante da oração, e não ouvira a voz do menino.
No mesmo cômodo, ainda que parecesse a léguas de distância, o padrasto escutava rádio. Todo dia agora tocava uma mesma musiquinha e uma voz dizia: “hoje entrevistamos o candidato democraticamente eleito…” e mais algumas coisas. Hoje o menino passava perto do aparelho no momento em que ouviu “a polícia vai mirar na cabecinha e…fogo!”. Sentiu uma pontada e levou a mão à orelha. Não sabia porquê mas pensou que podia ser pela sua mania de prestar atenção a tudo. Lembrou de sua tia que vivia dizendo “pára de xeretar! numa dessas você ainda vai parar na prisão!” quando notava o menino pelo bairro, perto de conversa de gente grande.
Abriu a porta de casa. Nunca passava da grade, onde costumava se escorar e ver as vidas passarem. Quase sempre não acontecia nada. Não sempre quase nada acontecia.
Naquele dia a primeira vista alcançou uns pingos azuis no chão. Pensou se alguém tinha chorado ali. Estava se sentindo esquisito, como se não conseguisse mais entrar ou sair, como se estivesse agarrado a alguma coisa fria. Fechou os olhos e quando voltou a abrí-los virou a cabeça sentindo imediatamente o seu corpo tremer, um misto de medo e adoração. Rompeu aquele bloqueio dando um passo a frente. Voltou-se para umas mãos grandes que se moviam lentamente e apontavam ao sol-lua, entre flores e planetas. Sentia como se pudesse colorir aquela passagem pra onde costumava se voltar. Se foi o menino largando uma fechadura caída na soleira.